12.29.2014

Poema em carta no quiosque da Areosa

Escrevo-te longe já de teus olhos Adorinda, embargado pelo peso do sentimento, pelo fardo da partida. Susterei a respiração até voltar, ancorado à memória de teu perfume.
Medeiros não serei mais. Serei uma caricatura disforme, ansioso pelo regresso. Lá longe onde o vento sopra quente, guardar-me-ei dentro de mim, libertando-me quando meus olhos pousarem, de novo, nos teus, Adorinda.
Guardarei com cuidado, para não se partir o teu Medeiros, aquele a quem chamas exagerado. Exagerado por o inspirares, por trazeres o perfume de teu corpo no vento que o acaricia.
Que longo caminho o de teu odor Adorinda e que benfazejo esse vento que o trazes. Vento suave esse que o embalas, leve, como teu lábios de veludo, Adorinda.
Sou exagerado, Adorinda. É exagerado o Medeiros. Sim, exagerado. Sim, é.
É também imperfeito, taciturno, estouvado. Pessoa, enfim.
É um heterónimo de mim. Sou louco, Adorinda, é-o também Medeiros, desavergonhado, com o coração na boca. É pedra fria. É pedra fria Medeiros de cabeça perdida, é pessoa, enfim.
Somos tudo e muito mais. Somos apaixonados, Pessoa, enfim.
Somos apaixonados, eu e Medeiros. Apaixonados, eu. Por ti, enfim.


Há no velho quiosque da Areosa uma austera moldura com a carta de amor de Medeiros. Decrépita e pronta a esfumar-se no tempo, como a parede que a segura, recebe o bulício matinal de uma artéria movimentada na periferia do Porto.
A posse é antiga, de tempos idos há muito, pertença anterior da tia-avó de José Silva, o velho proprietário, que há altura das partilhas havia ficado com um molhe de cartas velhas, foda-se. Do recheio de casa antiga sobram papéis carcomidos, porra. Papeluchos da tia Adorinda, que deus a tenha e guarde no eterno descanso, mas que podia ter-se lembrado do seu sobrinho querido, porra. Nem um chavo pra' amostra.
A prosápia do Medeiros, como lhe chama o Silva, é a derradeira prova de amor que Manuel havia deixado, para ler mais tarde, quando da longa viagem no vapor para Lourenço Marques, onde seria representante comissionista da já decana Companhia de Vinhos Borges, na senda de alargar o negócio e de conquistar clientes no inexplorado, mas florescente, mercado africano.
O Silva havia-a emoldurado há mais de dez anos, após folhear, atento, a resma de papéis escritos, catando, sôfrego, qualquer valor escondido nos resquícios de herança que lhe calhara. Compenetrado por momento largo, dada a intensidade da correspondência, levantou-se, enfim, mudo, de olhos esbugalhados e papelada segura debaixo do braço. Não mais permitiu à família tocar, sequer, na intensa correspondência dos dois amantes, verdadeira novela de cordel de gosto duvidoso e vocabulário impróprio para gente de bem e temente ao senhor.
Num laivo de silêncio cúmplice, ou de vergonha, pelo amor alheio de vidas passadas, encarcerou as epístolas do demo-com-cio no armário do quarto. Fê-lo, diz, por respeito à sua tia-avó. Fê-lo, talvez, pelo pudor tonto de quem não ama e que, por isso, não sabe que a palavra escrita, quando impregnada desse fogo ardente, não tem gíria nem calão
A prosa poética devia, de facto, ter-se já esfarelado depois de tantos anos de amasso, lágrimas escancaradas, cálidos afrontamentos, suspiros. Estava, assim, gasta mas legível. Firme como a palavra dita, valendo releituras diárias no mortiço quiosque da Areosa, cafofo especializado na venda de parafernália de estirpe e feitio diverso, produtos sem eira nem beira, chinesices sem sentido, tralha inominável e outras merdas sem jeito que iam desaparecendo, a conta-gotas, pela altura do natal.
Relera-a Adorinda, vezes sem conta, em surdina, até adormecer. Dias sem fim à espera de mais uma carta do Medeiros. Assim o fez meses, anos, décadas, agarrada ao pedaço de papel já bolorento da humidade que carregava consigo. Fora a última prenda do Manuel, para ler mais tarde, quando o perdeu para a oportunidade de ouro em trabalhar para empresa comercial de que se havia esquecido do nome, mas que era de futuro.
O toque suave do papel na tez enrugada era, junto com lágrimas suspensas, a sua companhia derradeira no catre escuro de três por três que alugava na rua das Congostas.
Era um casebre arruinado por longa vida, a necessitar de telharia nova e de mãos robustas que lhe aplacassem o peso inabalável do tempo. Ladeado por dois prédios devolutos, com escores rijos de sustentação, tinha por vizinhos a bicharada urbana comum. Também a rua estava enferma, esquecida no murmúrio metálico do pára-arranca habitual.
Doente e devoluta, a rua. Portas arrombadas, janelas emparedadas, monturo da vizinhança, mictório de bêbados.
A octogenária sempre se negara a abandonar o seu reduto. Passava horas de guarda à janela. Rejuvenescia quando apanhava amantes ocasionais refreando ímpetos de macho dominante e fêmea libidinosa. Encolerizava-se com os agarrados de prata-a-queimar que tudo trocavam por miúdos. Sorria com a brincadeira de crianças travessas que por ali apareciam a desmando dos pais.
Acalmava a velha com a brisa noturna, trazendo o aroma à brilhantina do Medeiros, tal como ele lhe descrevera. Sabia ter sido uma artimanha desse malandro que me levava sempre com conversa fiada, matraqueava Adorinda. Mas tinha a certeza que o vento que a afagava, tinha-o antes enlaçado e, por isso, sentia os seus dedos no meu corpo, as suas mãos no meu regaço, os seus braços nos meus, ciciava escarlate, lembrando sarroncas e tamboris de tempos idos.
De dia, torrava Adorinda ao sol estival em seu umbral, seu trono seguro, com a certeza de que aquele era calor enviado por Manuel para lhe alentar o dia.
Era uma sonhadora Adorinda. Tinha sangue vareiro, talvez por isso. Era mulher condenada a sofrer numa espera interminável, ansiando por avistar batel no horizonte. Era, por isso, lutadora Adorinda, envolta em xailes vários sobre botija de porcelana.
Voltava, por vezes, levemente à realidade. Tinha laivos de lucidez que a libertavam do pesadelo. Aninhada nos braços de Medeiros, vertia, exultada, lágrimas juvenis de quem sente o calor do amor.
Logo terminava esse fulgor impossível de acreditar, voltando à prisão de olhar frio, intocável, indiferente ao aconchego diário do seu Medeiros, velho solitário em casa ocupada. Um belo partido esse rapaz, ainda hei de casar com ele, delirava Adorinda.