4.28.2015

Há livros que são


Há livros que são, na realidade, um folguedo. Hemingway, em obra publicada a título póstumo, comprova-o.
Havia já largos anos que não tocava na sua obra por ter terminado, precoce, a minha incursão na larga série “livros do brasil” e na monumental “coleção vampiro” que meu avô compilava, religiosamente, na prateleira da sala e que eu catalogara com o carinhoso epíteto de “a libralhada belha”. Os livros de Hem serviriam, então, de tira-gosto entre Maigretes e Poirotes, tendo-me levado por outros caminhos para lá dos policiais.
Passaram-se, pois, mais de 20 anos desde a última vez e, por isso, havia guardado a genialidade simples da sua obra no fundo do meu emperrado contador da memória.
Em “Paris é uma festa” a genialidade da narrativa séria, justa e escorreita, a descrição viva de formas e sentidos, a prosa simples e sadia, a descrição autobiográfica – quase voyeurista – fervilha em cada página, revestindo-as de uma intensidade que vale a pena desfolhar, de tão maduras que estão.
Numa narrativa corrente e lesta, relembra os anos entre guerras, descrevendo o dia-a-dia numa cidade viável que não nos é permitido conhecer. Uma cidade em que a pobreza e o sonho não esbarravam contra a dignidade, em que gente comum convive miscigenando, na carência de meios, os heróis do quotidiano, os sobreviventes de uma Europa que se erguia da ruína e que, ironia, caminharia, de novo, para o abismo.
Não só da escrita fluente e realista vive a obra. Estratégicas passagens, de uma simplicidade impressionante, imprimem-lhe a força necessária para continuar. São, na verdade, farpas sonoras de amigo afoito empestando o ar e, teimando em permanecer, lembrando que nem só de som se faz a bufa. É flatulência, de facto, mas de uma que não assiste a todos, é de uma amena e purificada delicadeza, enfim, daquela que cheira ao regaço da rainha santa isabel.