No quiosque Santana amontoam-se cidadãos de pleno direito. São clientes vindos dos mais distantes lugarejos do distrito do Porto à procura de solução para os seus problemas legais.
É o povo autêntico, de pronúncia carregada, que se junta no indiferente estabelecimento contido entre portas, junto à praça dos poveiros.
É uma loja elegante. Sem mordomias vãs nem luxos desmedidos, ao lado do Rufino Oculista, comerciante de clientela fixa da Caixa de Previdência.
O quiosque abre portas pelas dez para fechar quando o último cliente sai, de folhelho em punho, com as instruções regulamentares que o livrarão do acosso da autoridade. É composto apenas por móveis vazios à espera de ser, uma e outra vez, ocupados. Ao toque do batente a porta abre com mecanismo automático, algo rudimentar pelo uso de fio de nylon preso a puxador interior com mola retardadora, para deixar o próximo cliente à vontade na descrição das suas dificuldades. No interior uma cadeira, flanqueada por pequenas secretárias, à espera dos apontamentos que se julguem necessários, ocupam o pequeno espaço quadrangular em frente ao confessionário, tribuna de penitência móvel, em cerejeira bem polida e trespassada por pequenos orifícios circulares, por onde a clientela murmura pecados, e ranhura inferior de onde são cuspidos talões dactilografados com perguntas, recomendações, pareceres, respostas diversas.
O processo é simples: a porta abre, o cliente entra, expõe as suas questões e recebe talões pela ranhura do parlatório. Sabe ler, vai sozinho. Não sabe, arranja quem saiba e o acompanhe.
No final, talão derradeiro com conta modesta, calculando o trabalho à hora, sempre na base dos centavos. Este documento não serve de fatura.
O confessor, Santana, é figura obscura que ninguém se lembra ter alguma vez visto. Apesar do mistério em torno da personagem nunca deixou de haver fila no seu quiosque. É que o parecer entregue ao freguês anónimo, apesar de raramente ser o que se queria, era, invariavelmente, acertado.
Nem todos, porém, estavam dispostos a manter o anonimato de tão enigmática figura. Isso mesmo achava o rotundo e bexigoso Barrabás, bêbado confesso, que iria transformar o mistério em mito.
Depois de inúmeras tentativas frustradas de entrada à força, sempre travado pela fila que aguardava vez, conseguiu Barrabás irromper pela porta, porque tenho de saber quem nos ajuda, e acometer pelo confessionário estacando de pronto, absorto na imagem cintilante e de olhos arregalados que se entrepunha no seu caminho, logo ali apaixonando-se pela altivez de personagem de cinema mudo que o acompanharia, vezes sem conta, nas noites gélidas do seu dormir errante.
Depressa, contudo, chamou-se à razão, acordou Barrabás do seu pasmo e rompeu em sentido contrário, tapando a cara de vergonha e fugindo, porta fora, sem conseguir olhar os embasbacados camaradas que haviam paralisado tal a rapidez com que a velha carcaça barriguda se movia.
Logo nasceu o boato nas línguas afiadas do gentio. O rude Barrabás, sem conseguir explicar se o que viu era verdade, assombração ou fruto da carraspana, entaramelando as palavras como sempre fizera, caiu em descrédito, deixando rolar, à tripa forra, o boato do anjo de Santana que baixava ao quiosque todos os dias para interceder junto das entidades legalmente instituídas e por decreto autorizadas a autuar, fiscalizar, confiscar e culpar, sem apelo nem agravo, a gentalha miúda que teimava em estrebuchar.
Santana é um anjo, caralho. Corria de boa em boca, pelas ruas do Porto. De tal forma que aos necessitados foram-se juntando os agradecidos, seus amigos, respetivos familiares, curiosos diversos, mirones em geral e outros devotos, em romaria pela rua, levando as autoridades a proibir ajuntamentos com mais de cinco pessoas à porta de tão ilustre quiosque, sob pena de identificação e voz de prisão por distúrbio da ordem pública. Liminar, é que com a bófia não se brinca.
Logo ali, porém, a bitaitada começou a correr lesta na boca de labagem da populaça. Filhos das putas dos cabrões de merda. Palhaços do caralho. Idem mamar, eram as palavras de ordem, rumor que subia de tom secundada por uma ou outra sacudidela de pôr o quico à banda, até ser chamado o corpo de intervenção para impor respeitinho. Bico calado ou fodo-te o focinho, ouvia-se por entre os capacetes reluzentes e cassetetes em punho.
O ambiente prometia trovoada, não fossem os berros de Lurdinhas, vareira devota da Santinha que logo ali decretou ser aquele solo sagrado, inconspurcável com violência, zona de culto e demais nominativos que convenceu todos.
Chegou-se então ao meio termo, solução de compromisso, vá. Entre vinte a trinta ajuntados, tudo bem. Mais do que isso, eram postos a circular por ocupação indevida da via pública. Até parecia um estado de direito, foda-se. Ninguém quer levar no focinho por causa da santinha. Quem começar a sarrafada salta logo para o purgatório e, por consequência, alvo de sevícias, que alguns não desgostariam não é, mas que, por via das dúvidas mais vale não arriscar, dizia a vareira que sempre tentava aplicar o novo palavreado aprendido no seu dicionário de bolso, companhia de leito de vários anos, à falta de melhor, uma décima edição do Cândido de Figueiredo que é um mimo, tem palavras que nunca mais acabam.
Santana, santinha para uns, anjo para outros, já calma depois do valente susto com o rompante de Barrabás, aparvalhava-se com tamanha confusão. Sem nunca aparecer (era santa, não asno) ia continuando o seu trabalho, cada vez mais ocupada com o fluxo sempre constante de pareceres que lhe chegavam. Tornava-se hercúleo o trabalho lesto que lhe pediam, enchendo-lhe a sala, agora do castigo, com oferendas várias, algumas delas vivas e de difícil transporte.
Santana era de facto uma santa para os seus clientes. Certamente não pelas prerrogativas da Congregação para a Causa dos Santos mas para os que a ela se agarravam, como lapas, sugando-lhe o derradeiro parecer em busca de salvação.
Santana, contudo, não só era santa como também mulher e toda a confusão que a rodeava atafulhava-a de trabalho e desalinho.
Esguia e de olhar penetrante, havia crescido ao som da ladainha da avó Leonor, vendedora de língua da sogra na costa nortenha, percorrendo, incansável, a linha de veraneio nos quentes dias de estio quando as melhores famílias acorriam às praias ventosas para se banharem nas águas terapêuticas do Norte. A ladainha contínua e o bater forte das ondas na pedra moldou o seu carácter persistente e implacável. Era, por isso, Santana, mais mulher que santa, apesar do burburinho de rezas várias e cheiro intenso a vela queimada que vinha da rua.
Para ela o dia de labuta corria fácil. Não fosse o diferente vociferar da clientela que não arredava pé e o aumento significativo de panaceias legais a ministrar, tudo seria normal na sua correria diária de trabalho em punho.
Mas quando findava o dia, quando percorria as ruas crepusculares do Porto granítico, anónima na sua condição de mulher, tudo se transfigurava. O olhar desanimado de transeunte incógnito, os ombros desalentados do vendedor de rua, as mãos trémulas de velhote, o queixo desesperado de agarradito, isso humanizava-a. Toldava-lhe o discernimento que julgava precisar para a decisão. As pessoas, de facto, suavizavam a sua inclemência profissional. Na luta, as armas têm de ser idênticas ou a batalha está perdida sem sequer ter começado, recordava as palavras de cátedra que havia ouvido noutra vida. Não que considerasse a lei desumana. Claro que não. Não o era simplesmente porque a variável humana não era, sequer, parte da equação no ditame normalizador do regime de então.
Era, por isso, Santana, mulher. Lutava, sem fim, entre o sentimento e a razão e, nessa luta, Santana saia sempre a ganhar. Sentia-o apesar do avolumar de pareceres e do pouco tempo que guardava para si. Como mulher, como pessoa, ganhava já com ampla vantagem nessa bem querença que raramente via em outros mas que a faziam exalar encanto. Era, de facto, encantadora Santana e tal notava-se a olhos vistos. Pela vereda rotineira fazia rodar cabeças, a ver quem passa, carregando consigo um charme de embevecer caminhante. Era mulher, Santana. E nessa condição era olhada com inveja por umas e com gulodice de cafuné, por outros.
Porém, nesse particular, era Santana impenetrável. Distanciava-se, propositada, evitando tanto a devoção, quanto o aflorar de feridas antigas de gata sentida. Rodeava o galanteio com um qualquer bloqueador de piropada que carregava, por precaução, na sua mala. Era insondável Santana, a mulher, insondável.
Os poucos que com ela privavam, pequenos negociantes de rua onde fazia compras, lojistas habituais no seu circuito rotineiro, vizinhos solícitos que com ela partilhavam escadas, todos, invariavelmente, sentiam o seu vigor contagiante, ansiando pela partilha e, por isso, aguardando em pulgas a chegada de seus longos cabelos pretos.
Conversa fácil, sorriso sincero e olhar reluzente cativam qualquer um. E para Santana isso era simples, era ela. Desta forma foi construindo, paulatina, pequeno grupo de devotos, pessoas que aguardavam, impacientes, a sua atenção.
Santana, a santa, era, então, prisioneira de seus afazeres e Santana, a mulher, era, por isso, cativa do seu fulgor. Estava, bem se vê, prisioneira de sua vida, Santana de lindo olhar.
Lentamente sobrevinha a noite e com ela a solidão ia ganhando, lesta, espaço à azáfama do dia-a-dia. Tentava Santana ocultá-la, fustigando-se com calculismos que apenas amainavam o seu abatimento. Criava histórias de carcereira maléfica que tudo controla: Carochinha de dois tostões não sou. Nunca prisioneira de minha vontade. Carcereiro sim, porque quero, prisão dourada em que o ópio sou eu e a minha santidade. Samarcanda de doutores, eletricistas, arquitetos e até paneleiros. Assim trauteava Santana, santa e mulher, acompanhada do negro corvo que a janela bica, noturno, tenebroso, a lembrar que lá fora aguardam, alvoraçados, os carrascos de sua vida.
Assim repetia, até dormir, Santana menina, contendo a lágrima ardente que havia de ser sua companhia por anos afora e que a agrilhoavam à vida, por graça de deus e martírio dos homens.