8.21.2012

coisas perturbadoras de ler

Perturbador. Foi a palavra que encontrei para descrever "Jerusalém" de Gonçalo M. Tavares.
Numa escrita tipicamente europeia, algo cinzenta, quase preta, é um livro delicioso, de um rigor científico tanto na complexa rede de relações entre as personagens, quanto no enredo que se vai revelando ao longo da(s) história(s).
A edição é da Caminho que, no entanto, não faz jus à qualidade do conteúdo. Nota-se laxismo na composição, demonstrada tanto na rudeza do desenho, quanto no relaxe da paginação. De facto percebe-se alguma incompreensão por parte do editor em encontrar o melhor empacotamento para uma obra de grande carácter.
Se o conceito “livros pretos” é perfeito, a forma como o livro (o embrulho, não o conteúdo) é construído, é rudimentar, incomparável com composições como de “O Corvo” (sobre o qual postarei em breve) da Relógio d´Água ou como os volumes da coleção Clássicos da Cotovia.
A sua sucessiva reedição sustenta-se, quanto a mim , numa força de vendas maior, a da qualidade da escrita e da pujança do enredo.

Obrigatório passar os olhos.

8.17.2012

coisas de ler

"Recomendo-o sem qualquer tipo de reserva" lê-se em blogs e comentários de quem, como o quioske, rumina literatura de vez em quando.
O livro "Quando Lisboa Tremeu" de Domingos Amaral é bom exemplo de leitura de Verão, despreocupada. Porém, não me convence.
Não que eu tenha os pruridos intelectuais de uma decadente elite literária portuguesa. Nem que considere o romance histórico uma novela barata da TVI. Na realidade gosto muito do género e, quando com qualidade, é uma excelente forma de exercitar o desprendimento temporal e de contexto.
De facto, o livro apresenta bom enredo, boa articulação das personagens e uma envolvência algo aliciante de desespero, morte e sexo, sempre ao bom gosto "sangue, pão e circo" de que todos gostam.
A obra em torno do terramoto de Lisboa de 1755 e dos dias que o sucederam é uma obra algo interessante, com um final razoavelmente bom, mas, quanto a mim, mal construído.
Na realidade, apresenta-se repetitivo (talhava-lhe 5 ou 6 cadernos) na catadupa de eventos em torno de dois fugitivos do Limoeiro, de um rapaz órfão e de uma freira algo devassa condenada à fogueira. Apresenta alguns factos secundários interessantes, caracterizadores da época, mas a circularidade da ligação entre personagens, a limitação do espaço (a cidade de Lisboa) e a continuada repetição das descrições, tornam o livro maçador, como se estivéssemos a ler o mesmo vezes sem conta.
O final, relativamente inesperado, apesar de clássico, difere-o de romances históricos francamente fracos que já comentamos (p.e. A Estratégia do Bobo), mas não deixa de ser exagerada a reiterada repetição, como se, à falta de dados novos, fossem necessários exercícios gramaticais para prolongar o que já foi dito, páginas atrás.
Vale o preço que apresenta na edição de bolso, não é mau, mas a força do título merecia igual força do miolo.

8.10.2012

quiosque patrício

Patrício é um filho da puta. Não daqueles cabrõezinhos que dão a facada na primeira ocasião para fazer dinheiro. Não. Também não o é pela sua santa mãe que o alimentou, desde tenra idade, com dinheiros amassados à custa do corpo. Não.
É antes um filho da puta amoral. Um daqueles que pesa os escrúpulos quando à frente se colocam valores instituídos, mas que os quebra à primeira oportunidade. O seu quiosque de 1 por 1 reflete-o. É Patrício espelhado.
Único aberto até altas horas, é um quiosque noctívago, isto é, abre de noite, fecha de dia. Não pelas vendas aumentarem, longe disso, nem para poder fugir às rusgas legais que à porta batem em horas de pessoas normais. Não.
Abre para o engate. Para o engate. O homem do quiosque é conhecido por aplacar qualquer incauta que lhe vá na lábia.
Vende muito tabaco o quiosque do Patrício. Também já vendeu cerveja contrafeita, mas os donos dos bares da zona já trataram disso, os filhos da puta.
Agora vende tabaco, muito tabaco. De enrolar principalmente. E contrafeito, aquele sem etiqueta. Desse também. Vende muito desse o quiosque do Patrício. E há noite é melhor, não há tantas rusgas.
Há, mas são para fechar os bares. São os filhos das putas dos vizinhos que os chamam depois de atirarem sacos de mijo à cabeça dos bêbados filhos das putas que fazem pandega à porta dos bares.
Mas são uns filhos das putas amorosos esses bêbados. São. Compram tabaco. Às vezes cravam um. Não têm dinheiro, coitados. Percebe-se, foi tudo nos copos. Fica a vontade de mais um cigarro para aplacar a serradura lingual que fica no limbo pré-ressaca. E com o cigarro vem a saliva. E com ela o amainar do serrim seco que quebra os lábios e dificulta a fala. Sim. É isso que dificulta a fala. Não é a cerveja, é a lixa.
E com isso, lá dá um cigarro Patrício, para logo vender mais um maço. Um crava hoje é um cliente amanhã, pensa por vezes Patrício. Tirando, claro, os cravas profissionais. Mas esses já os conhece Patrício. São uns filhos das putas esses cravas convictos. Sempre a cravar, sempre a cravar. Filhos das putas é o que são.
Neste vai e vem de bêbados e cravas, lá aparece uma oportunidade. Dessas que acabam a noite excitadas mas sozinhas pela inércia de um qualquer filho da puta que não lhe soube dar a volta, pensa Patrício. E essas, pesca-as todas Patrício. É um filho da puta Patrício. Fecha a portinhola do seu quiosque, abre a braguilha. Todas quiseram. Disso todos têm a certeza. Até Patrício. E elas também, não há dúvida.
Por uma ou outra vez, por falta de melhor, lá foi um crava ao castigo. Fecha a portinhola do quiosque, abre a braguilha. Pronto. Esses cravas por norma não voltam. É uma boa tática, pensa Patrício. Afasta os mosquitos, diz Patrício.
Por cada novo entrante no quiosque, faz Patrício um traço no interior do seu quiosque. Filho da puta o Patrício. Algumas (e alguns) tentaram entrar de novo no seu quiosque afoito, mas Patrício não vai na conversa. Quer novidades, não quer mais do mesmo, o filho da puta.
Os porteiros dos bares da zona já o conhecem de ginjeira. É o Patrício, filho da puta. Não é nada de especial o rapaz, mas deve ter um instrumento de ouro, dizem. Todos o querem.
No final da noite lá fecha Patrício o seu quiosque. Por vezes (muitas) sem faturar. Outras, vai contente Patrício ajeitando as calças à macho. Vai dormir. Há noite tem de estar fresco para a faina.
Sabe Patrício que é um filho da puta. Mas não quer pensar nisso. Está bem como está. É o que é. E sobre isso, nada a fazer.

8.06.2012

pérolas do outro mundo

Não posso deixar de partilhar uma pérola histórica que acabo de ler numa tese de doutoramento acabada de ser defendida e APROVADA:
"Em Portugal a expansão do saber (...) desencadeou, a nível educativo, reformas e contra-reformas, das quais destacamos:
- A reforma pombalina que implementou a laicização do ensino, pela expulsão das Ordens Religiosas (...)"

Apresenta outras pérolas semelhantes, como a sugestão de que a ditadura militar teve como consequência o "aumento do nível da taxa de analfabetismo quando, em 1835, Portugal tinha sido o quarto país do mundo a decretar a escolaridade obrigatória".
 
Se isto fosse o Facebook, não clicaria em GOSTO, clicaria em GOSTO MESMO MUITO DE PÉROLAS ANACRÓNICAS E DISPARATADAS!

E assim vai a pujança científica nacional...

8.02.2012

mais coisas de ler

Pondo os comentários literários em dia (sou um gajo pretensioso), dedico-me agora ao "Afirma Pereira" de Antonio Tabucchi, o meu primeiro livro do autor.
Sumariamente, é um livro a não perder.
Adaptado para o cinema um ano após o seu lançamento, desenrola-se em lisboa, num verão tórrido de 38 e retrata uma cidade (e um país) acomodada ao regime Boca-Fechada-e-Pouco-Pio, que teima ainda em permanecer, focando-se no acordar paulatino de um solitário jornalista lisboeta.
A leveza das palavras é, quanto a mim, a principal eloquência do livro. Num contexto romântico urbano, pauta pela suavidade da escrita, pela incomparável fluidez do discurso e pela construção progressiva de um enredo que se adensa à medida que o texto avança.
De pasmar os diálogos fluentes e o jogo de palavras sugerindo uma transcrição de qualquer interrogatório policial perdido num arquivo central, tornando, assim, o final surpreendente.
Vale, por fim, pela implacável humanidade que encerra, afirmo eu.