12.28.2007

sabores perdidos no quiosque quelimane

Nas fraldas do penedo de São João, em terras de demónios escondidos em gente de bem, o encerrado quiosque quelimane subsiste de fantasias e sonhos de volta ao passado de Arménio Jerónimo.
De tez calcinada por aventuras desmedidas e estórias fantásticas, o velho esquecido e solitário tornado à pacatez do berço deixa fugir, às 16.30 de todos os dias, antigas lendas e mitos de feitiços, caçadas e mezinhas que recria, teimosamente, na tasca do zé manel. Revê-se nos antigos sabores agressivos do whisky destilado em baldaria de segunda a que se havia habituado nas longas viagens pela planura dourada da savana sobrevoada.
Retornado do caldo bojudo e arisco nessas lonjuras da áfrica portuguesa, é uma ténue imagem de si: um colono improvável e autoritário que impunha posturas e eliminava sem mágoas todo a escaruma que lhe impedisse o passo.
Revoltado pelo fim do paraíso colonial de que se lembra ter vivido, é hoje um tocador de pífaro na filarmónica de Esbojães, para reviver, ao som da melodia cega, sons e cheiros que nunca mais sentiu, que espera renominar nos segundos finais, quando a vida esvoaçar em daguerriótipos escurecidos diante si.
Revolvido pelo presente impessoal e tacanho da aldeia natal que nunca foi de verdade sua, deixa à banda o bibaque azul, sentindo o que outrora fora o resguardo suado da brasa que por lá se impunha.
Relembrando o odor pestilento e viciante de sangue animal em terra virgem, deixa-se levar pela brisa outonal do fim de tarde silencioso nas montanhas musgo e ouro, quebradas pelo chilrear dos últimos sobreviventes do adormecer de Dezembro. Tenta inspirar o leve hálito que a terra humanizada ainda exala, lembrando a quem a agarra que ainda sobrevive a senhora do lago.
Sobrevive, enlutado e sem garra, teimando nas lembranças que ainda resistem aos lampejos de esquecimento cada vez mais frequentes, fazendo-o desesperar por menos um dia na balbúrdia da civilidade.
Arménio Jerónimo resiste, teimosamente, ao esquecimento lembrando a terra autêntica, original, sem mácula nem cultura que subsiste em fantasia. Lembra a remota áfrica nossa, onde a verdade humana é real, onde a vida circula ao som da natureza e não ao toque de caixa da humanidade. Onde tudo é autêntico, frio, cru, sedento de sanguíneas realidades e alvo de trastes humanos. Onde a natureza funciona, não como por cá, em que aldeias pitorescas, recalcadas de tantas outras, nunca deixarão memória de si. Serão nada, serão vazio, serão uma côdea mal amada, uma terra de ninguém.
Arménio Jerónimo fantasia, interioriza, enlouquece e morre, por dentro e por fora, deixando a saudade voar pelas imagens dos últimos baques.

12.07.2007

do quiosque salamano

O velho parasita deixa-se levar pela revoada intransigente que o conduz estrada abaixo, para os confins da aldeia obscura em que habita há setenta e tal anos.

Periclitante, arrasta-se entre pedras talhadas ao acaso da marreta, que limitam a congosta húmida e fria, calçada com granito persistente e escorregadio pelo uso.

O frio aperta, gela o nariz enquanto o bafo não o conforta. Deixa um leve ardor no respirar e deixa exalar um hálito fumegante que rápido se dissipa na folhagem despenteada que surge, mal Remoinhos termina.

O velho estafermo continua sem rumo na bruma que se põe e que o impede de ver o destino. Décadas depois de ter sido parido nessas paragens, "no mato, por entre feras e demónios", como tinha ouvido vezes sem conta a sua parideira ressentida, caminha para a morte, depois de atazanar a aldeia com as suas devassidões de mastro à mostra e de fornicações animalescas.

“Puta que pariu o velho!” Era a frase que andava de boca em boca nos últimos 15 anos, desde que caiu da cadeira em que se apoiava para aviar a égua. Desde lá, só o cajado lhe permite deambular, sem rumo e sem amor, pelas ruelas frígidas desse asilo de velhos que esperam a morte, na serra vazia.

“Que o diabo o carregue para de onde veio”, ouviu sair do quiosque Salamano, antes de se perder no caralho do nevoeiro.

“Que o diabo vos carregue comigo, cabrões lambe-cus!” disse nostálgico antes de se perder no manto branco.