12.23.2013

A Filha do Papa

O livro A Filha do Papa é um dos romances históricos mais coerentes e viciantes que tenho lido nos últimos tempos. Com base em factos e mitos, Luís Miguel Rocha cria um enredo policial que prende o leitor até à última página.
Luís Miguel Rocha, é, acima de tudo, um estratega da escrita, lançando fagulhas para a leitura do seu anterior livro "O Último Papa" (que ainda não li mas que não irei, de certo, perder) e deixando o leitor estasiado com a articulação das personagens, com o rigor da história que se vai revelando sem pressas, com a deliciosa relação que vamos criando com as personagens.
Na onda tão em voga de romances históricos, à qual tenho dedicado alguma atenção, está a anos luz de autores como José Rodrigues dos Santos ou Domingos Amaral. Na verdade, no constrangedor livro "A Mão do Diabo", José Rodrigues dos Santos ensaia, de forma algo interessante, sobre as motivações da crise, escrevinhando, contudo, um romance francamente débil, roçando o caricato, que me levou a, de alguma forma, rotular o género.
Erro tremendo meu, do qual me penitenciarei com chicotadas no lombo.
Depois de Amin Maalouf ou de Mário de Carvalho, Luís Miguel Rocha é uma lufada de ar fresco neste mercado tão competitivo da luta por espaço de prateleira natalícia.
Obra a toda a prova, faz jus ao rótulo de best seller que tem.
Apenas um reparo. A capa é beática de mais, merecia um frontispício mais memorável. Percebe-se que o editor tentou chamar à compra públicos diversos, não o censuro. Mas como leitor, parece-me religiosice a mais...
Na forma, um autêntico Castle português.

12.06.2013

O remorso de baltazar serapião


desumanização, título do novo livro de valter hugo mãe é a palavra que melhor define a brutalidade que reveste o livro "o remorso de baltazar serapião". com uma cadência metódica de horror humano, circunda em torno da história dos sargas, principalmente de baltazar, e sarga, a vaca.
é um livro sobre a usurpação da dignidade humana, consentida por todos e avalizada pelos pares, numa qualquer aldeia recôndita do portugal de outrora.
ao folheá-lo, não deixei de me lembrar das diatribes filosóficas sobre o papel demoníaco da mulher que um qualquer frade relata em "o nome da rosa".
mulher. mulher pecaminosa, embruxada, é aqui usada (não abusada, pois o conceito é desconhecido), num romance que em tudo se alinha com a verdade de um país, assim há não muito tempo.
um livro que leva ao trejeito, normalmente de escárnio ou de horror, com algum humor negro à mistura. as páginas passam velozes à cata de um remorso redentor final que, insuspeito, é revelado ao jeito de macondo moribundo.
num estilo rigoroso ao som do marca-passo, é um livro que retrata o caminho penoso da mulher, pré emancipação, requerendo concentração e necessitando, de vez em quando, de releitura.
li a edição quidnovi. bela leitura, com paginação densa mas legível. capa engraçada, mas que pouco diz sobre o livro.
 

11.29.2013

A Sul. O sombreiro

 
Li já há algum tempo um livro delicioso. O primeiro livro de autor africano que começo e termino. Excluo Camus, mais ao gosto da triologia europeia da altura: Fome/Guerra/Miséria e sem esse sabor africano e Agualusa, com imaginário autóctone muito engraçado, mas escrita mais ocidentalizada.
"A Sul. O sombreiro" é uma monografia dos primeiros anos de Angola, vista pelos olhos da populaça embrutecida que o povoava, à semelhança dos que por cá sobreviviam, entre governadores "filhos da puta" e colonizadores de seiscentos e setecentos.
O livro, de uma coerência da escrita sem mácula, usa termos africanos (sempre deixando, pela sonoridade, perceber a coisa dita) com os que por cá são conhecidos. Pontuação pouco clássica, mas de uma agilidade de discurso notável.
Miolo muito bem paginado e com revisão sem nada a apontar, apresenta uma capa arriscada que contempla referência, mapa e imagética, com coloração diversa, mas que resulta muito bem.
Depois de tentar leituras diversas africanas, de Mwangi a Mia Couto, sempre sem grande sucesso, Pepetela abre-me as portas da literatura africana, cheia de sonoridades e de sentidos bem vivos, tal como havia sentido no primeiro livro de contos africanos infantis que em criança minha mãe me lia, entre uma moralidade pouco ocidental e histórias de cabaças mágicas, crocodilos falantes, pássaros com língua própria e outros.
Pepetela acaba de lançar novo livro natalício sobre o qual ainda não passei os olhos, mas se for da qualidade deste, vai muito bem a língua portuguesa.

11.01.2013

O Cartógrafo do Infante

Tempos longos, estes de paragem na escrita, que muito deverá ter agradado aos olhos imensos que por aqui foram passando.
Entretanto, alguns livros foram passando-me pela frente, na longa viagem amarela entre Gaia e Porto. Retomo aqui as notas de livros que foram tocando, para o bem e para o mal:
"O cartógrafo do infante", obra dos anos 60 de Frank Slaughter reeditada pela Esfera dos Livros.
Romance histórico que retrata a fase inicial dos descobrimentos portugueses entre finais de trezentos e início de quatrocentos e que se baseia na vida de El-Hakim, escravo veneziano que, entre histórias várias, chega à corte do infante D. Henrique para o ajudar na arte de marear.
Livro muito interessante com retrato de época vivo e bem construído e que dá respostas a algumas dúvidas históricas quanto aos motivos para a criação do posto avançado de Sagres.
Final clássico, nada mau, mas não fantástico.

8.13.2013

Um enjoativo e magnífico livro


Depois deste interregno de vários meses, não por falta de tempo (como alguns sempre defendem) mas por falta de vontade (mais vale a verdade do que um nariz comprido), sugiro um livro que resultou de um trabalho magnífico de Gustavo Sampaio: Os Privilegiados, uma edição de A Esfera dos Livros lançado em julho de 2013.
A partir de um trabalho verdadeiramente notável de pesquisa, Gustavo Sampaio faz uma súmula de "como os políticos e ex-políticos gerem interesses, movem influências e beneficiam de direitos adquiridos".
Enjoativo porque, página após página, relata-nos resultados de uma análise profunda dos meandros de potenciais incompatibilidades entre o interesse público e privado de deputados, autarcas, afiliados e outros coladores de cartazes. De revoltar o estômago dos mais resistentes.
É avassalador a quantidade de dúvidas que assolam o leitor à medida que vai folheando (ou desfolhando) "Os Privilegiados".
"Os políticos são todos iguais!" cita o autor, no início do livro, para logo rotular esse já ditado popular de "falácia circular que condiciona o pensamento e bloqueia a conversação". Não podia concordar mais.
Contudo, depois de terminar este interessante livro, tendo a verborreá-lo, Gustavo.
É que trabalhos de consultoria por deputados em empresas cuja área de negócio é sensível à comissão parlamentar em que esse mesmo deputado exerce funções (não devo ter sido muito claro, mas o autor é); aumentos excessivos de contratos públicos por ajuste direto, consoante o governo em funções; listas intermináveis de ex-políticos membros de órgãos sociais das principais empresas cotadas no PSI 20; subvencivos (ex-deputados) ad aeternum (paradigmático o exercício exemplar de funções do Relvas [sim, também aparece por cá, não raras vezes]); centenas de autarcas reformados embora em exercício de funções; um Presidente que se diz incapaz de fazer face às despesas com uma reforma de 1.300€, recebendo, de facto 10.000€ (por mês); acumulações de vencimentos e reformas no Governo Regional da Madeira; os mais de 5.000€ que cada deputado, de facto, aufere (em despesas de representação, ajudas de custo e mais outras ajudas para fazer cenas); os aumentos de 81 euros mensais no rendimento dos políticos (sim, quando se introduziram cortes nos subsídios de férias e de natal); a contratação de boys sem a mínima experiência na área para vogais, presidentes e outros cargos; a contratação de dois miúdos de 21 e 22 anos respetivamente para as funções de técnicos especialistas para acompanhamento das medidas do memorando da troika (ambos com única experiência profissional 1 estágio de 6 meses/cada); entre muitas, muitas outras, não poderei de citar a sábia vox populi (hoje estou muito pró-latim) "os políticos são todos iguais!".
Há uns mais iguais do que outros, claro, mas porra, é uma corja dum camandro!

7.01.2013

O monstro da ciência - citações

Na ciência global e interdisciplinar actual, a citação parece ser a cola que permite que a fina corda entre a evidência e a especulação não seja quebrada. Por isso mesmo é a citação a base da qualidade científica de periódicos, de autores, de afiliados e também o barómetro da verticalidade científica do trabalho produzido. 

6.07.2013

os outros


Dias assim são enfado. São de marfim: frios e duros. Chamam-nos à realidade que não queríamos acreditar.

Dias assim são enfado. São cruéis: gumes afiados. Deixam-nos perceber a triste realidade da maralha humana que nos rodeia.

Dias assim são enfado. Tristonhos e sufocantes por perceber que rês má é difícil de retomar o trilho da humanidade.

Dias assim são sufocantes. Sufocam o impropério que sai com vontade de atingir o pequeno verme que se diz humano.

Dias assim são uma merda. Vejo que estive sempre errado quando defendi a tendência humana para a partilha igualitária.

Por mais argumentos que se use, volta tudo à velha tacanhez que os caracteriza.

Olha Outro, amigo meu, verdadeiro merecedor de homenagem, que se fodam esses gajos.

5.06.2013

A Tábua de Flandres


Obra viciante de Arturo Pérez-Reverte. Já me tinham avisado que era um valor seguro. Percebo agora porquê.
Policial de primeira que apetece continuar, bem estruturado e envolto em mistério. A narrativa enreda-se em torno de uma obra de Van Huys, primitivo flamengo de quinhentos e os seus intérpretes, em novecentos. A história desenrola-se numa trama de crime e a arte que vai fluindo por intermédio de um misterioso jogo de xadrez, a lembrar Nabokov. Primoroso na rede sempre cativante que cria, com final improvável, de qualidade, sem fronteiras definidas entre o bom e o vilão. Delicioso.

3.25.2013

crítica da razão ausente

Acabo de passar os olhos pelo "Crítica da razão ausente" de António Manuel Baptista (AMB). Um livro de 2002 na continuidade da guerra aberta a Boaventura Sousa Santos (BSS). Há altura designada por guerra da ciência, é uma obra divertida de ler por ser uma crítica a BSS no seu "Um discurso sobre as ciências". Na crítica algo feroz ao entendimento que BSS faz de ciência, parece-me mais um manifesto contra a politização do discurso científico (apesar do próprio AMB ser acusado disso mesmo, numa ótica do toma-lá-com-o-que-me-acusas-para-ver-se-gostas).
Tal como no jornalismo em que o discurso é deturpado com objetivos algo dissimulados, também na obra de BSS AMB vê motivações obscuras para a sua produção. Carlos Magno, Prado Coelho, Vasco Graça Moura, são alguns exemplos ao estilo BSS que, ainda que noutras áreas, vão impregnando o leitor de termos complexos e algo dúbios, cheios de salamaleques, para irem cravando ora o cravo (claro) ora a ferradura.
Ainda que com provas dadas, é particularmente irritante essa vontade constante de criticar, para logo agradar, mantendo-se nas boas graças do rotativismo vigente.
Lembro-me, de facto, quando estudava, de ouvir falar do livro de BSS, sempre num tom algo seminal, mas, pela densidade das citações e da terminologia arrevesada, nunca passei da capa. Hoje, passei os olhos sobre o seu pequeno livro. Aliás, acho que é o mais curto calhamaço que li...
Na altura, talvez o reduzido tamanho do livro de BSS tenha-me chamado à atenção. Hoje, ensonou-me.
Interessam-me as questões do comportamento da ciência, das redes de criação científica, da forma como se mapeia o conhecimento, mas, por favor, não me chamem para teorizações do estilo todo-o-conhecimento-científico-natural-é-científico-social ou todo-o-conhecimento-é-auto-conhecimento.
Sinceramente, deixa-me com muito sono. Já o seu contrário, a crítica cáustica, essa é sempre bem-vinda.

1.25.2013

A casa de papel

Movendo-se no universo de A Biblioteca de Babel e do Cemitério dos livros esquecidos, o pequeno livro, entre o romance e o conto, de Carlos María Dominguez, é delicioso.
Com enredo muito interessante, desenvolve-se em torno de um esquecido, viajado e cimentado livro.
Deixa perceber uma técnica algo erudita, mesclada com o toque sensual do castelhano sul-americano.
Receita:
Servir Casa de Papel com clericot.

1.10.2013

um deus passeando pela brisa da tarde

Ainda com a nostalgia que os bons livros nos deixam, mal os terminamos e, por isso, com a história à flor da pele, não posso deixar em claro a agilidade com que foi escrito e a clareza do enredo, fundamentado nos primórdios do paleocristianismo no contexto da lusitânia romanizada de finais de ocupação.
É um livro delicioso que justifica a quantidades de reedições já impressas (tenho notícia de pelo menos 12).
Ladeado entre os ritos da vida privada e o direito romano, descreve magistralmente o quotidiano e a estratificação social clássica, deixando antever os primeiros passos de uma seita que, séculos depois, se tornará dominante.
Romance histórico muito bem escrito em estilo autobiográfico (do dúunviro Lúcio Valério). A aparente desilusão de, na abertura, referir que "nunca existiu", dificulta a leitura dos primeiros parágrafos, que logo é secundada pela impressionante articulação das várias componentes da história.
Mário de Carvalho mostra como, a partir de uma boa fundamentação do contexto e com escrita clara e liminar, pode ser tão gratificante a leitura.
Uma composição da editora Caminho que, como já me havia habituado, não prima pela excelência do design, mas pela qualidade da escolha editorial.

1.02.2013

e mais coisas de ler

Ao contrário da capa da mini-série de Joaquim Leitão, a encadernação do "Até amanhã, camaradas" é algo insipida, bem diferente do miolo cativante que reveste.

Do editorial Avante, que sempre nos chama para o vermelho vivo doutrinal, apresenta composição gráfica de uma sobriedade tocante dando, até, certo corpo ao enredo que num fôlego se folheia.

É um livro austero. Sem querer ser um instrumento de propaganda, não deixa de a fazer, numa ambiência de permanente conluio anti-fascista que nos trouxe até aqui.

Aprecie-se, por entre a trama inquietante dos homens sem nome, tanto as descrições da sociabilidade rural e simples da populaça, quanto os apontamentos místicos que envolvem as personagens revolucionárias.

Para quem, como eu, não viveu esse tempo, fica um retrato muito interessante do país que me gerou, não só pobre e comezinho, mas também lutador diário, ora por batatas, ora por ideais.