5.03.2009

ossos de um quiosque vivo

- Sinto algo muito estranho, Balu... É como se os meus olhos ardessem. Nunca me tinha acontecido. Estarei doente?

- Não, Mogli. São lágrimas - disse Baguera-. Algo que nós nunca poderemos sentir, só os humanos...

E, deixando rolar aquele fogo dos seus olhos pelas faces, Mogli dirigiu-se à aldeia.

As lágrimas dos homens... as lágrimas dos homens... pensava enquanto debitava mecânico o final da história.

Também aquele fogo havia rolado de meus olhos, anos antes, quando finalmente degolara a culpa atribuída que me pesava a consciência.

Do choro nascera a raiva que, com o tempo, transformara-se em tristeza profunda. Foi-se suavizando até se tornar macia... intocável... indiferente...

Mas o peso da culpa que atribuía por décadas de silêncio incorruptível, avassalador, (in)transposto, matinha-se macerador, remoendo os ossos do quiosque vivo de miudezas que tanto custava a vender.

Tudo mudara quando, num insuspeito dia soalheiro de verão, as abandonadas palavras romperam, trôpegas, pelos lábios moribundos do insano culpado.

"Sinto algo estranho" pensei, no momento em que o fogo rolou pelas faces, em catadupa, tal o peso da libertação.

Tudo mudara! Da indiferença brotaram portuguesices sentimentais. Compaixão e piedade arrumaram o rancor e arrefeceram o fogo...

Mas apagá-lo, libertar das cinzas o quiosque em fogo vivo, não. Talvez o fim das suas miudezas possam aliviar o espaço, dedicando-o ao rescaldo de labaredas acesas noutras frentes.

A ressonância da culpa degolada, de quando em vez, volta, para lembrar que lá está, nunca debelada, sedosa ou indiferente.

Mantém-se enraivecida, mas escondida, pelo intercalar da memória em declínio.

3.10.2009

A improvável história de Dona Ana e sua rija fibra de bem-querer descomposto


“De que fibra és feita?” Havia sido a questão de abertura para a história que agora se conta, de boca em boca, no longínquo Castelo Rodrigo de ontem, da altura do gigante Salomão e sua viagem para lá dos Alpes.

Anos passados desde a última vez em que gentes insalubres da raia tinham apontado o dedo a belzebu em pele de mulher, agora volta o clérigo à carga, para culpar Dona Ana de rija fibra pelo seu bem-querer fértil que puxava homem.

Tudo havia começado pela falta de resposta de Dona Ana em confissão. O puro levita a havia condenado, no sermão periódico, a abraçar a pureza e renegar o pecado.

Dona Ana não havia respondido. Sem pressa, puxou-se para longe da fria abadia, entre olhares acusadores, para nunca mais voltar.

Alvo de amores desalinhados que em brasa punham o povoado, de sumptuosos odores à passagem, Dona Ana de rija fibra levantava ventos tempestuosos de desejo e de intempérie, que regavam a aldeia, mal à janela se punha.

“Vento demoníaco” sussurrava a invejosa gentalha por o mesmo não poder esconder. Ciciavam ao ver a improvável tez morena de sorriso suspenso pelo olhar profundo, que antevia segredos inomináveis e vontades saciadas de soslaio.

Gomo de lânguida tensão pulsante, gemia com seus amores de fortuna, sem receio pelo coscuvilhar que profetizava maleita rogada, botada pela pudica bambochata dominical.

Castas palavras a culpavam pelo único amor verdadeiro da cerca. Pela benquerença de si e do momento, pelo verdadeiro saciar de afectos precisos, pelo autêntico acariciar de si própria, pelo ultraje de brandir a sua liberdade de bicho, de mulher, de gente.

Angelicais orações a condenavam ao ardor do inferno, ao caldeirão tártaro, ao vil desprezo da expulsão, à irada crença de pecado, luxúria, gula e mais outros tantos, dos capitais.

Encantadoras beatas de coração partido pelo tresmalhar de uma alma, a exorcizam com o sotaina. No calor da lareira de casa, gemiam sós, abandonadas pelo acre cheiro mofado que as envolvia enquanto os sagrados consortes roncavam.

Dona Ana e seus anónimos bardanas, incólumes à zelotipia detonadora de ódios, libertam-se da frugal roupagem de preconceitos para se dedicarem à bestialidade, ao desejo, ao gemido, ao amor, deixando no passado a inveja insana do povo.

Escapula-se Dona Ana, do Castelo Rodrigo de má memória, para fazer do incerto sua morada segura, do fortuito forma de vida, da liberdade uma certeza.

Tempos funestos em sítio agreste, esse em que Dona Ana viveu, sem sequer um mísero quiosque seguro como abrigo.