4.12.2010

um quente cheiro a bolo

O bucólico monte verde pintalgado de branco sujo dominava a vista fria da manhã invernal em que o sol se havia afinal mostrado, enquanto o som cadente a chocalhos de ruminantes livres entoavam o canto do campo.
Teimavam na ladainha compassada só interrompida pelo abrupto badalar avisando da chegada do corpo de Graça.
O hálito gélido que queimava entranhas não abrandava na glacial igreja em que, em surdina, velhas megeras urdiam histórias pérfidas de uma vida de devaneios passados da defunta, entre arranques e lamentos de quando em vez aliviados por um rol de tossicares anciãos, em catadupa.
Graça andara de boca-em-boca desde que havia levantado a mão frente ao couro retesado que lhe toldara o lombo, anos a fio. Havia fugido, lambido as feridas profundas de um amor mal amanhado, e vivia agora, lorde de bairro, do seu trabalho ocasional de rodo em punho quando sobreveio a morte, sem interlúdios, no final de um qualquer dia de esfrega e piaçaba.
Ainda pairava o cheiro a bolo quente de chocolate novo quando arremeti pela cozinha logo interrompido pelo corpo hirto de tez suave pontilhado de uma solitária pinga de sangue.
O cheiro, o cheiro a bolo quente, acabado de cozinhar, havia sido testemunha e derradeiro refúgio solitário no chão frio em que exalou o último bafo seguro, sem explicações, só, quando premonizava uma vida de bolos feitos, esturricados, comidos, festejados, vividos.
O cheiro a quente bolo feito inundou a casa, escoltou o legista, acompanhou-a na longa estrada até à perdida aldeia e puxou saliva aos convivas nas exéquias, dissipando-se por fim no cortante vento que recebeu Graça no cemitério ao fundo do vale.
O silêncio sobrepôs-se ao frio universal e o quente cheiro a bolo, o fedor adocicado de bolo feito esfumou-se lentamente, acompanhando o arrastar peremptório da boa terra atirada sobre o feliz corpo de Graça.