11.11.2005

Finalmente chegou a avó Micas

Chegou a avó Micas!

Mulher madura, de convicções fortes e contestatária, é uma mulher de outros tempos. Vem da longínqua Macondo, a terra da solidão empedernida que predestina uma vida lânguida e taciturna aos seus habitantes.

No corpo trás as marcas de outras batalhas, guerras entre mulheres à cata do melhor macho, aquele rechonchudo que dominava a aldeia.

É coxa. Conseguiu essa proeza ao encavalitar-se num escadote, tentando chegar às romãs luzidias que esperavam ser colhidas. Conseguiu, portanto, conciliar o seu nome com uma realidade: todas as Micas são coxas.

De facto assim é, coxeia ligeiramente pela fractura mal tratada e calcificada que lhe ficou, para sempre, como sinal de uma juventude de traquinices e de amores mal resolvidos, que lhe deram um olhar triste e um clamor constante por tempos que não voltam.

Outra das suas particularidades é a enigmática orelha ratada. Muito se conjectura sobre ela e muitas estórias circundam esse sinal. Uns dizem tratar-se de um sinal místico, colocado para marcar, para sempre, a figura maligna que a queriam ter feito, por cobiça... mas o seu temperamento dócil deitou por terra todas essas cochicharias.

Esse mesmo bom feitio foi alvo de outra teoria. Dizia-se que um dos seus inúmeros amantes, no calor da acção, terá arrancado parte da sua orelha. Mas nunca se viu um curativo, uma mazela recente no seu abanico.

A própria, em tempos, teorizou sobre isto, dizendo que se lembrava de, à nascença, em pleno berço, sonhar com a passeata de um roedor: levou-a a andar em carroceis fantásticos, quando nunca os tinha visto, e que lhe tinha oferecido um gelado dessa mesma máquina de fazer gelo que Melquíades havia trazido, muitas décadas antes, para outra povoação, com o mesmo nome, mas do outro lado da terra.

Nunca se soube que era feito do recorte que faltava, o que é certo é que ainda lá estão marcados como serra, dando-lhe um ar misterioso e estranhamente sensual, apesar da idade.

Noutros tempos foi elegante e esbelta. Assediada pelos jovens das aldeias vizinhas, acedia aos seus recônditos desejos, sem pudores e sem medos da condenação social que olhares invejosos lhe faziam.

Hoje, velha e encarquilhada, apenas os jovens lhe dirigem a palavra para ouvir a sua voz ritmada e trinante da experiência acumulada ao longo de muitos anos de tropelias sexuais. Rapazes filmam na memória as histórias, para mais tarde recordar no recanto do seu quarto, raparigas coram e fazem o mesmo, sem pudores, falando do seu corpo, das suas vontades e dos cuidados necessários à fornicação prolongada no tempo.

A avó Micas é assim, livre e vivida, como poucos conseguiram ser na aldeia que prendia vontades e soltava enxofres sedativos para tranquilizar os seus habitantes.

Está lá em casa, para animar as hostes!

7 comentários:

Poor disse...

as coisas que se aprendem com as avós, vê se aprendes alguma coisa sobre 'o calor da acção' para depois nos contares!:D

Unknown disse...

È de aproveitar a presença destas ilustres pessoas, onde cada ruga e cada marca tem uma história á espera de ser partilhada.
Porque é que deixamos de respeitar, nesta nossa bela sociedade, os anciãos dos nossos clãs e tribos???

Abraço

Sukie disse...

Pobres das avós que foram impedidas de amar e viver como se deve por causa das mesquinhices, tacanhices e invejas do pessoal das suas aldeias. Só é pena que a avó Micas pareça um pouco só hoje em dia, trista e melancólica. Gostaria que ela fosse feliz.

kiko disse...

Gaja Boa: Foi muito giro, ouvir os lamentos iniciais (habituais da vó), não foi? Beijos Mana

Amie: Tudo o que sei é por histórias contadas por outros. Sei que fala com adolescentes sobre isso, mas carmba, é minha avó! Ela deve-se descair de vez em quando, deixa rolar! ;) Bj

Mannanan: São histórias de vida que nunca saberemos como se desenrolaram, mas, mesmo não contando tudo, a avó micas deixa sempre perceber uma vida cheia de sentimentos diversos e vidas cruzadas! Abraço


Moonj_rita: Está comigo rita!!! Como pode estar só!?!?! Agora que veio lá para casa, nunca mais a vou largar, claro!! E foi feliz como poucas outras terão sido na sua situação, o que é já uma vitória! ;) Bj

Miguel de Terceleiros disse...

Ah pois sabe! Quando a conheço?!

noasfalto disse...

Infelizmente só tenho uma avó, com a qual nunca tive uma verdadeira conversa de neto/avó.

Aproveitem bem porque quando derem por ela é tarde!

Parabéns à tua avó Micas.

Abraço

1entre1000's disse...

Super terno este post... :)